quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Enquanto a chuva não me abandona

Já era quase noite. Um sábado com cara de fim de mundo, nuvens carregadas, acinzentadas, quase que inteiramente negras.
Estava apenas na companhia do meu computador e da brisa gelada que batia no meu rosto vinda da janela.

A janela do meu quarto, ou sala, ou cozinha, ou banheiro, parecia maior do que a casa. Era um caos, tudo se confundia. Era muito pequeno, muito bagunçado. Digno de um homem solteiro, desleixado e relaxado.
Mas eu não era assim. Eu estava assim. O motivo eu não sei bem, ou sei lá, até sei.
Estava incumbido de escrever. Não para alguém. Era para mim mesmo.
Vivo disso, escrevo um monte e vejo se alguém quer esse monte. E quando ninguém aceita, eu espero que venham me dizer o que escrever para eu ganhar a vida.
Deixei a casa uma zona como forma de me inspirar. Esse ambiente repugnante e asqueroso talvez me desse uma ideia. O fato é que a ideia não vinha e eu não aguentava mais a bagunça.

Quando levantei da cadeira decido a arrumar tudo, vi um clarão imenso pela janela e em seguida um barulho estrondoso. Era o maior trovejo que eu já tinha ouvido em 32 anos. Foi só o tempo de o meu coração acelerar com o susto, e a luz acabou.
Não foi a luz da minha casa ou do bairro, foi a luz da pequena e pacata cidadezinha do interior que eu me enfiei para ter sossego.
Do alto daquele morro repleto de mato, não se via mais nada. A chuva chegou com imensa força. Fui, no meio daquela bagunça generalizada, tateando tudo para tentar encontrar meu celular. Depois de muita dificuldade o encontrei, mas foi uma tentativa falha. Não havia um ponto de sinal sequer. Eu estava totalmente incomunicável. Decidi então procurar velas.
Estava bem perto da cozinha e com a luz fraca do visor do celular conseguia enxergar, ainda que com pouca nitidez.
Achei uma vela, uma única que parecia já ter sido usada, talvez não por muito tempo. Seu pavio estava preto.

Agora minha missão era encontrar fogo, já estava no local certo, bastava achar a caixa de fósforos.
A encontrei em cima do balde de lixo. Fui caminhando até o quarto para acender a vela.
Sentei na cama, abri a caixa de fósforo e me deparei com um enorme problema. Só havia dois fósforos.
Ao acendê-la  um vento forte bateu pela janela e apagou o fogo. Só me restava um fósforo. Fui para o banheiro e acendi a vela tranquilamente. A levei para a sala e fiquei durante alguns minutos andando pela casa tentando achar um jeito de fazer com que meu celular funcionasse. De nada adiantou.

Sentei no chão, encostado na porta que dava da sala pro quarto. A chuva, além de não parar, ficava mais grossa e intensa a cada minuto e caía sobre a janela fazendo barulho.
Fiquei pensando o que fazer e não cheguei a nenhuma conclusão. Sem vizinhos relativamente perto, sem luz, sem formas de comunicação. Eu estava isolado.
Para passar o tempo, peguei o celular que estava ao meu lado e decidi que ia então gravar algo que saísse da minha cabeça, já que eu não tinha o computador para escrever, eu tinha como produzir algo e transcrever depois. Apertei o botão pra gravar. Foram-se 2 minutos e eu só abri a boca pra bocejar. A chuva era torrencial. Uma das mais insanas que eu já vi. Exclui aquela gravação de dois minutos mudos.
Dobrei minhas pernas, debrucei meus braços sobre meus joelhos e encostei parte da minha testa no meu antebraço. Fechei os olhos e pus-me a pensar rapidamente no que fazer, no que dizer, no que pensar.

Abri os olhos bruscamente e apertei mais uma vez o botão pra gravar. E foram essas as palavras mais belas que meu eu-lírico já pronunciou:

Enquanto a chuva não me abandona eu tento continuar sendo eu, ou pelo menos sendo o mesmo eu que finjo ser. Ser por ser, ser sem saber, ser talvez sem crer que se é. Mas é. Eu quis dizer que é, ou que há. Há sim! Há uma chuva tão perto e tão distante de mim. Me sinto molhado, ensopado. Não das gotas que caem do céu, mas do suor que exalo por desespero. Definitivamente sou como a atual situação-problema: uma bagunça generalizada, uma pessoa sem luz e pavorosamente grosseira como esses trovões. Sem contar a surdez que insisto em manter. Agora só ouço o barulho dos pingos grossos que caem escorrendo pela janela, e dos infinitos trovões. Literalmente eu só ouço a mim, a mim que nem sei quem sou. Um desastre e ao mesmo tempo um sonhador. Um sonhador que busca palavras pra construir sonhos. Enquanto aquela chuva não se vai, não posso sonhar. Mas é possível que eu já esteja sonhando agora. Com palavras vibrantes que só são ouvidas pela bagunça da minha casa e a tempestade lá de fora. Claro, e o celular. Objeto que substitui meu ritual de papel e caneta ou computador e ideia.
Que tempestade! Que tempestade em copo d’água. Não sei como consigo ser idiota assim. Sobrevivo sem palavras. Mas não sobrevivo sem sonhos. Mas todos os meus sonhos são construções das minhas palavras. Então eu sou a palavra engasgada, que não vive amordaçada, que não sobrevive presa e impossibilitada. Então eu sou, desculpe repetir, um mundo alucinado de desejos envoltos de uma só palavra de duas sílabas e seis letras: sonhos.

No dia seguinte tudo voltou ao normal e o sol já estava saindo. Acordei com a claridade e me dei conta de que dormi no chão. Do meu lado direito apenas restos de uma vela que havia acabado. Do meu lado esquerdo o meu celular, sem bateria.
Levantei com dificuldade, o chão era duro demais. Fui até a janela com a cara amassada e um pássaro pousou na sacada. Doce e manso, não se importou com minha presença e se arriscou a piar, como se e desse bom dia.

O verde daqueles morros pareciam mais verdes e vivos do que nunca.
Joguei algumas roupas que estavam espalhadas na minha cama e sentei pra pensar no que havia acontecido. Pensei ter enchido a cara, mas não vi nenhum rastro de garrafa ou lata naquela zona. Levei as mãos ao rosto me esforçando pra lembrar o motivo de ter dormido no chão. Comecei a ligar as coisas: não tem luz, acordei do lado de uma vela... Faltou luz, o mato não está molhado somente do sereno, choveu também. Sim choveu!
Levantei, peguei o celular... O olhei fixamente: essa merda tinha que ser tão corrupta de bateria assim? Não serve pra mais nada...

Fui em direção a janela com o objetivo de jogá-lo longe. Para minha surpresa o pássaro ainda estava lá, como se me esperasse, ou se esperasse que eu fosse fazer aquilo.
Ficamos nos encarando. Ele pousou na mão onde estava o meu celular e em seguida voou para uma árvore ao lado. Quando olhei, ele estava no ninho com seu filhote e sua fêmea.
Talvez ele estava construindo o sonho dele. E possivelmente se eu jogasse meu telefone longe, eu estaria destruindo o meu.

Olhei pro meu celular e voltei o olhar para o pássaro.
Suspirei: Sonhos. Você não desistiu do seu por causa de uma tempestade. Por que é que eu tenho que desistir do meu por... por... nada?
Dei meia volta e fui arrumar a minha bagunça externa e interna.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Temporário

Tempo lento, sem vento
Tempo frio, morno
Temporário, simplório
Sem horário, sem vida
Tempo morto, tempo torto
Tempo vago, tempo amargo

Temporário, como um armário
Sem lugar específico
Sem dono, sem sono
Sem descanso, sem amor

Ignorado, ignorante
Sempre errado, sempre errante
Tempo longo, tempo tonto
Tempo vesgo, inconstante

Temporário, temporário
Armário, guarda-coisas
Arbitrário, vagaroso
Vegetal, silencioso

Sem cor, sem dor
Com amor, com flor
Com começo, com fim
Com medo, com segredo
Tempo pássaro, tempo voador
Temporário e sem valor